terça-feira, 11 de outubro de 2011

O disfarce da força - Ivonil Parraz

O disfarce da força - Prof-Ivonil Parraz-Professor de Filosofia na Faculdade João Paulo II – FAJOPA (Marília/SP)
Colaborador do Canal de Filosofia Espaço Ecos PortalVMD
segue - Fragmento do Artigo

(...)Se na sociedade dos homens a força é que é justa, a justiça não é fortificada pela instituição das leis. Estabelecidas pela força, as leis não são a expressão concreta da verdadeira justiça. Mas se as leis, uma vez estabelecidas, são tidas como justas, é a força que é justificada. Justificando a força, a justiça passa a ser o seu disfarce.
No fragmento La 103; B. 298, intitulado "justiça, força", Pascal expõe o modo pelo qual a força passou a ser justificada.
É justo que o que é justo seja seguido; é necessário que o que é o mais forte seja seguido. A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem força é contradita, porque sempre existem pessoas más. A força sem a justiça é acusada. É preciso, pois, colocar juntas a justiça e a força e, para isso, fazer com que aquilo que é justo seja forte ou que o que é forte seja justo. A justiça está sujeita à discussão. A força é bem reconhecível e sem discussão. Assim, não se pôde dar força à justiça, porque a força contradisse a justiça e disse que ela era injusta, e disse que era ela, a força, que era justa. E assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o que é forte fosse justo.
Pascal inicia o texto sustentando que "é justo que o que é justo seja seguido; é necessário que o que é o mais forte seja seguido". Duas afirmações que se opõem. A justiça impõe a si mesma sem recorrer ao Ser e ao Bem. Ela não necessita de nenhum argumento, seja ele de utilidade ou de persuasão. Isto porque a justiça é justa por si mesma, por isso é justo segui-la. Não há graus na justiça como há na força. Não há um mais justo e um menos justo. Se é justo ou não. Há justiça ou não há. O que não é justo é injusto. "(...) A justiça e a verdade são duas pontas tão sutis que os nossos instrumentos são demasiados cegos para nelas tocar com exatidão. Se conseguirem, vão achatar-lhes a ponta e apoiar à volta toda mais sobre o falso do que sobre o verdadeiro (...)" (La 44; B. 82). A ponta da justiça não admite degraus que vão do injusto ao justo.
Enquanto a justiça impõe a si mesma, a força se impõe como uma necessidade física, mecânica, uma vez que sua qualidade é palpável: "essas tropas armadas que só têm mãos e força para os reis, as trombetas e os tambores que marcham à sua frente e essas legiões que os cercam fazem tremer os mais firmes (...). Eles têm a força" (La 44; B. 82). A aparição pública do rei é o momento em que ele manifesta a sua força. Todo o séqüito que o acompanha é signo de força. O povo, dominado pela imaginação e adestrado pelo costume, treme diante da exibição da força.
Enquanto não há graus na justiça, há graus na força: "é necessário que o mais forte seja seguido". Para que seja necessariamente seguido, o mais forte precisa manifestar sua força. Ao manifestar sua força, o mais forte oprime a força mais fraca. "As cordas que amarram o respeito de uns para com os outros em geral são cordas de necessidade; pois é preciso que haja diferentes graus, por quererem todos os homens dominar e nem todos o poderem, mas apenas alguns poderem (...)" (La 828; B. 304). A simples aparição pública do rei, manifestando a sua força, aniquila as outras forças. Aniquilação sem guerra, nem palavras. É a visão autêntica da qualidade palpável da força. Sua visão impõe o silêncio: "ela faz tremer os mais firmes".
"A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica." A justiça não tem força, pois, ignorada no reino da concupiscência, ninguém é obrigado e ninguém se obriga a seguí-la. Seguí-la é justo simplesmente porque a justiça é justa. No reino da concupiscência, em que cada um visa aos seus próprios interesses, não há nenhum atrativo em ser justo. A justiça não recompensa ninguém pelo fato de ser justo. Não tendo a força, a justiça é, em si mesma, impotente: é um nada de força. A tirania, que é a força sem a justiça, é, por sua vez, o todo da força. Violência pura. A força sem a justiça traz consigo o desejo de ser a maior força, o desejo de aniquilar as outras forças. Quanto mais elevada for a maior força, mais as outras forças encontram-se aniquiladas. O tirano é aquele que deseja a destruição de toda outra força.
A tirania consiste no desejo de domínio universal e fora de sua ordem. Diversos compartimentos de fortes, de belos, de bons espíritos, de piedosos, dos quais cada um reina na sua parte, não noutra parte. E às vezes se encontram, e o forte se bate com o belo como tolos disputando quem terá o domínio do outro, porque o seu domínio é de gênero diverso. Não se entendem. E o erro deles está em querer reinar por toda parte. Nada o pode, nem mesmo a força: ela nada faz no reino dos sábios, ela só tem o domínio das ações exteriores (...). A tirania está em querer ter por um caminho o que só pode ter por outro (La 58; B. 332).
Pascal oferece duas definições de tirania, isto é, da força sem a justiça. A primeira a define como aquela que deseja dominar todas as outras forças, inclusive aquelas de outras ordens: ordem do espírito e ordem da caridade. A segunda a define como aquela que deseja ser reconhecida como a maior força pelas forças das outras ordens. A tirania é própria da ordem do corpo, uma vez que ela "só tem o domínio das ações exteriores", ela "nada faz no reino dos sábios". Duas definições de tirania que no fundo são a mesma coisa: desejo de aniquilar todas as outras forças e desejo de ser admirado e amado por esse domínio universal.
"A justiça sem força é contradita, porque sempre existem pessoas más." A justiça sem força, que se impõe por si mesma como justa, é contradita pelas pessoas más. Estas, que sempre existiram, contradiz a justiça por suas próprias ações. Ora, se as pessoas más se opõem à justiça, elas se impõem, por suas ações, como justas. Para elas, a justiça é que é injusta. A existência de pessoas más contradiz a justiça.
"A força sem a justiça é acusada." A força sem a justiça, manifestando a sua força, reduz as outras forças ao silêncio. Quem então acusa a força? Enquanto as pessoas más contradizem a justiça sem força, é a justiça sem a força que acusa a força sem a justiça. Mas de que a justiça acusa a força? A força é a primeira qualidade manifestada pelo partido dominante e continua a ser pela imposição das leis. A força é então a qualidade das leis e, uma vez que estas são tidas como justas, torna-se o conteúdo da justiça (Lazzari, 1993, p. 249). Assim, a justiça sem a força acusa a falta de justiça da força.
"É preciso, pois, por juntas a justiça e a força e, para isso, fazer com que aquilo que é justo seja forte ou que o que é forte seja justo." Mas como colocá-las juntas se até agora o que vimos foi elas operarem em campos opostos? A justiça sem força não pode realizar nenhum ato justo, visto que ela é impotente. E a força sem a justiça só realiza ato de pura força, inclusive fora do seu domínio. A afirmação inicial do fragmento: "é justo que o que é justo seja seguido" é contradita pelas pessoas más: por aqueles que têm a força sem a justiça. Ora, estes, por suas ações, diz que a justiça é injusta. Assim, a força sem a justiça opõe àquela afirmação uma outra: "é injusto que o que é justo seja seguido" (Marin, 1997, p. 121). "É necessário que o que é o mais forte seja seguido": à esta afirmação, também inicial do fragmento, se opõe a justiça que acusa a força. Ora, se a força é acusada pela justiça, é a força que é injusta. A justiça sem força opõe àquela afirmação uma outra: "é injusto que o que é o mais forte seja seguido" (Marin, 1997, p. 121).
A força contradizendo a justiça e a justiça acusando a força mostra claramente que elas se excluem. Havendo exclusão, como "fazer com que aquilo que é justo seja forte ou que o que é forte seja justo"? Para isto é preciso identificar justiça e força, fazendo com que a força passe a ser uma qualidade da justiça ou que a justiça passe a ser uma qualidade da força. É preciso decidir sobre estas duas alternativas. A primeira delas é impossível de ser realizada: "(...) se tivesse sido possível, ter-se-ia posto a força na mão da justiça, mas como a força não se deixa manipular como se quer por se tratar de uma qualidade palpável, ao passo que a justiça é uma qualidade espiritual de que se dispõe como se quer (...)" (La 85; B.878). A justiça, ao contrário da força, é uma idéia: sua qualidade é espiritual enquanto a da força é palpável. Assim, primeiro não se pode obrigar alguém a seguir a justiça, uma vez que sua qualidade é espiritual; segundo, não se atribui uma qualidade palpável ao que só possui uma qualidade espiritual.
"A justiça está sujeita a discussão. A força é bem reconhecível e sem discussão." Por ser uma idéia essencial, a justiça é objeto de discussões polêmicas. Ela é objeto de discurso dos filósofos que desenvolvem inúmeros argumentos pesquisando sobre o que é o justo. A força, ao contrário, não está sujeita a discussão. Ela é "bem reconhecível", sua "qualidade é palpável". Não há um discurso da força, sua qualidade dispensa qualquer discurso. Nem também um discurso contra a força, porque não há argumentos diante do mais forte. Em face dele, os menos fortes se calam. "Isso é admirável: não se quer que eu preste honras a um homem vestido de brocados e seguido de 7 ou 8 lacaios. O quê! Ele mandará me dar correiadas se eu não o saudar. Aquela roupa é uma força (...)" (La 89; B. 315). A roupa, como também o séqüito que acompanha o rei e os vãos instrumentos dos doutores se transformam em signos, e signos da força.
"Assim, não se pôde dar força à justiça, porque a força contradisse a justiça e disse que ela era injusta, e disse que era ela, a força, que era justa." Em primeiro lugar, a força contradisse a justiça ao ser instituída como lei, tornando-se o conteúdo da justiça. Ela então pode dizer que a justiça é injusta e é ela que é justa. Em segundo lugar, a força, que não está sujeita a discussão, tem o direito de falar: "ela disse que...". A força se apropria dos signos da linguagem e passa a se representar em signos. "Ela se converte em sentido". Disso resulta que a força é cada vez menos visível no exercício do poder. E, por isso, o povo acredita estar obedecendo não pela imposição da força, mas a algo perfeitamente legítimo. A apropriação dos signos de linguagem pela força é movida pelo desejo de dominação universal e fora de sua ordem. Representada em signos, a força exerce o seu poder fora do seu domínio (que são as ações exteriores). Com o direito de falar, a força se institui. Ela faz a lei, que é sua lei, e por ela se legitima. Pela lei, que é sua lei, a força se autoriza. Ela tem então o direito de falar porque tem o poder da fala. O discurso da força é, portanto, o discurso do poder (Marin, 1997, p. 125).
A força não discute o que é a justiça e o que é o justo: "ela disse que a justiça era injusta, e disse que era ela que era justa". Justificando a si mesma, a força se apodera da justiça. O mais forte é o justo. É então injusto afrontar a força. Eis aqui o momento de transformação radical no texto. Pascal inicia o fragmento sustentando que: "é justo que o que é justo seja seguido; é necessário que o que é o mais forte seja seguido". Se o mais forte é o justo e se é injusto afrontar a força, é justo que o mais forte seja seguido.
"E assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o que é forte fosse justo." Sujeita a discussões intermináveis, não se pôde fortificar a justiça. Dizendo que é ela que é justa, a força atribui a si mesma uma qualidade espiritual. Aquela que só tinha uma qualidade palpável passou a ter uma qualidade espiritual. Esta não está sujeita a discussão, pois o seu sujeito é a força e não uma idéia. Por essa qualidade espiritual, a força pôde estender o seu domínio a outras ordens. Assim, o que é, na ordem do pensamento, heterogêneo: força e justiça passaram a ser, na ordem do vivido, unidas.
Justificando a si mesma, a força se instituiu, e a justiça passou a ser o seu disfarce. A força, disfarçada em justiça, estabeleceu a ordem no reino da concupiscência: "não se podendo fortificar a justiça, justificou-se a força, a fim de que o justo e o forte estivessem juntos e que houvesse paz, que é o soberano bem" (La 81; B. 299). A paz, no reino da concupiscência, é então fruto da justificação da força. Por isso que a justiça estabelecida deve ser aquela que "previne a sedição", pois, caso contrário, haveria a subversão da ordem, ou seja, a guerra civil: "o pior dos males". Essa paz obtida através da justificação da força, porém, não consegue eliminar a concupiscência, apenas a encobre.
Os homens passaram a conviver em paz, apesar da concupiscência. Mas, para que essa convivência fosse pacífica, foi preciso adequar a justiça ao reino da concupiscência.
fonte- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2006000200005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt