segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Por que não uso uma cadeira de rodas, gente -Maria Lindgren

Por que não uso uma cadeira de rodas, gente

O dia fatidico chegara manso. Um céu tinindo de azul, sem nenhuma pincelada branca a lhe conspurcar a uniformidade da cor apareceu bem cedinho, junto ao horário de verão. Em plena primavera.

A manhã corria e tostava os corpos que se despojavam das recomendações contra o sol depois das dez da manhã e se entregavam à ardência gostosa na pele. Os outros, coitados, sofriam os 35 graus inesperados, o suor a lhes escorrer pelo corpo. Tinham que cumprir o dever diário, sonhar com um final de semana digno de pegar uma cor daquelas. Fosse para relaxar, fosse para vender petiscos na areia.

Para Lucia, o dever se impunha talvez mais porque só tinha um único dia, marcado para executar o comando do governador: só receberia seus proventos de aposentada se fosse em pessoa no SEU dia. Não fora a cadeira de rodas, acrescida da presença da filha, não escaparia do destino dos portadores de necessidades especiais: esquecimento ou desprezo.

Nas vésperas da obrigação começava a faina: localizar motorista e taxi, pedir de joelhos – quem podia se ajoelhar, é claro – a Seu Aristides que lhe reservasse a manhã.

- Não posso faltar, viu Seu Aristides? Só mesmo o senhor pode me atender nesta situação difícil. Vai dar um trabalhão.

Com antecedência, Marcia avisou no trabalho a sacralização da data: 26 de outubro de 2011. Impossível deixar a mãe se virar sozinha. Seria necessário armar e desarmar a cadeira de rodas, colocar as pernas da senhora dentro do carro com o maior cuidado – qualquer pancadinha lhe fazia uma mancha roxa, além da dor crônica dos noventa anos quase. Depois, era tocar para a Cidade Nova, à procura de um local sem pressa de despejar passageiro, o que é uma parada no Rio de Janeiro atual.

O chofer, acostumado à Zona Sul, errou todas as saídas e entradas, deu meia dúzia de voltas para, finalmente, chegar à porta de um enorme galpão e perguntar se era lá que se processava a transação complexa de mudar de banco.

Ao saber que mais de sessenta mil servidores tinham a mesma obrigação, o homem apelou para a cadeira de rodas de sua cliente mais antiga. Não sem antes percorrer uns cem metros para chegar a um dos atendentes, todos com sotaque de paulista. Estranhou sobretudo os erres, sem saber que banco é negócio de paulista, não de carioca, pois até o pobre do BANERJ há muito se havia acabado por privatização insensata.

Depois de andar para cá e para lá, observando várias mesinhas e cartazes de boas-vindas ao mais completo banco de nossa terra, soube que a primeira fila, logo na entrada, era para cadeirantes e outros deficientes físicos. Percebeu a cena pungente de uma senhora a se arrastar no meio de duas outras, todas bufando de calor e desespero; deu graças aos céus pela cadeira de sua cliente.

Acostumado ao ir e vir a pé ou de carro, Seu Aristides correu ao portão de entrada e avisou à D. Lucia que era sopa fazer a transação. A pobre senhora, cansadíssima, conseguiu, no entanto, mostrar uma imitação de sorriso. Passou para a cadeira com mais esperança, foi conduzida pela filha até um balcão com duas atendentes simpáticas, elegantes, apesar do preto da moda discordar da canícula. Verdade que o clima era amenizado pelo ar condicionado.

Mais uns minutinhos e a aposentada de muitos anos receberia a honra de estar na mais requintada agência do tal banco repleto de regalias.

Meia hora de desce pernas ajeita cadeira, carrega corpo, assenta trazeiro e costas, carros apinhados na rua, buzinas frenéticas, vendedores de água e refrigerante – por que não um sanduiche? – e Lucia empurrada pela filha apenas: motorista tinha que ficar dentro do carro para não perder a vez, conforme explicara o guarda de trânsito, um maníaco por apito estridente.

Chão repleto de impecilhos, a título de decoração, superados pela astúcia de Marcia, habituada a sofrer nas vias comuns da cidade, terminava numa porta bem larga, graças a Deus, em algumas poltronas superconfortável bem branquinhas, não para D. Lucia, para os normais e, afinal, o balcão especial. Depois, explicações aos montes, das quais a metade ninguém entendia, mais uma ou duas caminhadas a outros balcões para os últimos esclarecimentos, uma pasta obesa de propagandas e mimos para os clientes, o reconhecimento eletrônico da palma trêmula da senhora, requinte do novo status... Pronto, de volta ao lar.

A essa altura, eram quase quatro horas da tarde e o trânsito começava a engrossar, fazer arder corpos e miolos.

- Né possível, Seu Aristides! Não são nem cinco horas. Essa gente vem de onde? O rush nem começou ainda, gritou Marcia para o impotente condutor do veiculo que não se mexia, comoos demias.

- Calma, D. Marcia! É assim mesmo. Só penso como vai ser o Ano da Copa nesta cidade que não aguenta tanta gente, tanto carro. D. Lucia nem vai poder dar sua voltinha até à praia. O calçadão vai ficar danado.

- Eu acho que vamos passar uns três meses numa cidade do interior para ouvir apenas os ecos da Copa pela televisão. Muita gente está pensando nisso, acescentou Marcia.

D. Lucia, boca não diz mais palavra, dormitava no arzinho artificial do taxi. Bem que no fundo pensava na imbecilidade de obrigar deficientes físicos a se locomover de suas casas. Logo um banco tão bacana! Talvez por isso mesmo: gente rica não sabe dessas coisas. Anda de helicóptero.

Mas eu acho que para mim seria ainda bem pior esse dia fatídico. Sinto dor no corpo todo e tenho que enfrentare tudo a pé. Quando não me estatelo no chão. Ah! Deus meu! Por que não tenho uma cadeira de rodas?                  
Maria Lindgren Colunista do Portal VMD - http://www.vaniadiniz.pro.br/