domingo, 29 de julho de 2012

L.Boff-Coração ferido: a irracionalidade da razão

"...Foi uma decisão cultural altamente arriscada a de confiar exclusivamente à razão subjetiva a estruturação de toda a realidade. Isso implicou numa verdadeira ditadura da razão que  recalcou ou destruíu outras formas de exercício da razão como a razão sensível, simbólica e ética, fundamentais para a vida social. ... urge resgatar a razão sensível e cordial para se compor com  a razão instrumental. Aquela se ancora do cérebro límbico, surgido há mais de duzentos milhões de anos, quando, com os mamíferos, irrompeu o afeto, a paixão, o cuidado, o amor e o mundo dos valores. Ela nos permite fazer uma leitura emocional e valorativa dos dados científicos da razão instrumental. Esta emergiu no cérebro neocortex há apenas 5-7 milhões de anos. A razão sensível nos desperta o reencantamento e o cuidado pela vida e pela mãe-Terra...."

 Coração ferido: a irracionalidade da razão 
                 por Leonardo Boff -Teólogo/Filósofo

 Não estamos longe da verdade se entendermos  a tragédia atual da humanidade como o fracasso de um tipo de razão predominante nos últimos quinhentos anos. Com o arsenal de recursos de que dispõe, não consegue dar conta das contradições, criadas por la mesma. Já analisamos nestas páginas como se operou a partir de então, a ruptura entre a razão objetiva (a lógica das coisas) e a razão subjetiva(os interesses do eu). Esta se sobrepôs àquela a ponto de se instaurar como a exclusiva força de organização histórico-social.
Esta razão subjetiva se entendeu como vontade de poder e poder como dominação sobre pessoas e coisas.  A centralidade agora é ocupada pelo poder do "eu", exclusivo portador de razão e de projeto. Ele gestará o que lhe é conatural: o individualismo como reafirmação suprema do "eu". Este ganhará corpo no capitalismo cujo motor é a acumulação privada e individual sem qualquer outra consideração social ou ecológica. Foi uma decisão cultural altamente arriscada a de confiar exclusivamente à razão subjetiva a estruturação de toda a realidade. Isso implicou numa verdadeira ditadura da razão que  recalcou ou destruíu outras formas de exercício da razão como a razão sensível, simbólica e ética, fundamentais para a vida social.
         O ideal que o "eu" irá perseguir irrefreavelmente será um progresso ilimitado no pressuposto inquestionável de que os recursos da Terra são também ilimitados. O infinito do progresso e o infinito dos recursos constituirão o a priori ontológico e o parti pri  fundador desta refundação do mundo.
Mas eis que depois de quinhentos anos, nos damos conta  de que ambos os infinitos são ilusórios. A Terra é pequena e finita. O progresso tocou nos limites da Terra. Não há como ultrapassá-los. Agora começou o tempo do mundo finito. Não respeitar esta finitude, implica tolher a capacidade de reprodução da vida na Terra e com isso pôr em risco a sobrevivência da espécie. Cumpriu-se o tempo histórico do capitalismo. Levá-lo avante custará tanto que acabará por destruir a sociabilidade e o futuro. A persistir nesse intento, se evidenciará o caráter destrutivo da irracionalidade da razão.
        O mais grave é que o capitalismo/individualismo introduziu duas lógicas que se conflitam: a dos interesses privados dos “eus” e das empresas e a dos interesses coletivos  do “nós” e da sociedade. O capitalismo é, por natureza, antidemocrático. Não é nada cooperativo e é só competitivo.
         Teremos alguma saída? Com apenas reformas e regulações, mantendo o sistema, como querem os neokeynesianos à la Stiglitz, Krugman e outros entre nós, não. Temos que mudar se quisermos  nos salvar.
Para tal, antes de mais nada, importa construir um novo acordo entre a razão objetiva a a subjetiva. Isso implica ampliar a razão e assim libertá-la do jugo de ser instrumento do poder-dominação. Ela pode ser razão emancipatória. Para o novo acordo, urge resgatar a razão sensível e cordial para se compor com  a razão instrumental. Aquela se ancora do cérebro límbico, surgido há mais de duzentos milhões de anos, quando, com os mamíferos, irrompeu o afeto, a paixão, o cuidado, o amor e o mundo dos valores. Ela nos permite fazer uma leitura emocional e valorativa dos dados científicos da razão instrumental. Esta emergiu no cérebro neocortex há apenas 5-7 milhões de anos. A razão sensível nos desperta o reencantamento e o cuidado pela vida e pela mãe-Terra.
Em seguida, se  impõe uma nova centralidade: não mais o interesse privado mas o interesse comum, o respeito aos bens comuns da Humanidade e da Terra destinados a todos. Depois a economia precisa voltar a ser aquilo que é de sua natureza:  garantir as condições da vida física, cultural e espiritual de todas as pessoas. Em continuidade, a política deverá se construir sobre uma democracia sem fim, cotidiana e inclusiva de todos seres humanos para que sejam sujeitos da história e não meros assistentes ou beneficiários. Por fim, um novo mundo não terá rosto humano se não se reger por valores ético-espirituais compartidos, na base  da contribuição das muitas culturas, junto com a tradição judaico-cristã.
Todos esses passos possuem muito de utópico. Mas sem a utopia afundaríamos no pântano dos interesses privados e corporativos. Felizmente, por todas as partes repontam ensaios, antecipadores do  novo, como a economia solidária, a sustentabilidade e o cuidado vividos como paradigmas de perpetuação e reprodução de tudo o que existe e vive. Não renunciamos ao ancestral anseio da  comensalidade: todos comendo e bebendo juntos como irmãos e irmãs na Grande Casa Comum.
                                    < *-* >
Leonardo Boff e autor de   Virtudes para um outro mundo possível, 3 vol.Vozes 2009.
* Tex. recebido por EMail do Autor para publicação e divulgação , este é Colaborador do Canal de Filosofia do Espaço Ecos - Portal VMD http://www.vaniadiniz.pro.br/espaco_ecos/filosofia_virginia/filosofia.htm

quarta-feira, 11 de julho de 2012

a PRÁTICA DO PRAZER... filosofia


  trechinho da aula do Prof. Claudio Ulpiano sobre Lucrécio e Espinosa 16-06-1994

"(...)Pela Vênus Voluptas, a alegria e a prática do prazer se dariam integralmente. Então, apareceu uma coisa muito estranha. É que nós estamos vendo uma filosofia se confrontar com algo considerado pelos homens, talvez, como o mais importante de suas vidas ― que é o amor. 
Então, essa filosofia está surpreendentemente afirmando que o amor ― de maneira alguma ― nos traria a felicidade. E essa filosofia é toda ela dedicada às PRÁTICAS; e ela diz que há duas práticas ― a PRÁTICA DO PRAZER e a PRÁTICA DA DOR. E ela vai afirmar que o amor é aquilo que nos traz muita dor ― porque nós dependeríamos permanentemente de alguma coisa exterior a nós mesmos. Enquanto que Vênus Voluptas, que é a amizade, comunidades de amizade gerando prazeres, independentemente de relações de qualquer um com qualquer um, não nos conduziria a essa posição do amor. Faria aparecer o que é mais importante na vida ― que é a liberdade. A liberdade seria conseguida pela Vênus Voluptas, mas seria impedida pelo Eros....

(...)Então, aqui vocês recebem a informação principal do que é exatamente a minha maneira de trabalhar em filosofia: a filosofia, a arte e a ciência ou a vida só têm um instrumento de libertação ― o pensamento. Então, isso se torna simples? Não. Isso se torna muito complexo, porque a partir de então, nós temos que verificar o que é o pensamento.(...) 

(...) Porque o sujeito psicológico que nós somos é constituído por associações de idéias. Nós vamos passando de uma idéia para outra, de um fato para outro: diz outra coisa meu amigo! Aí nós vamos conversando de uma coisa para outra, de uma coisa para outra, aí não abandonamos nunca o sujeito psicológico que nós somos. Para entrar no pensamento é fazer esse percurso em direção aos mundos possíveis, é sobretudo quebrar essas associações de idéias. Porque essas associações de ideias são exatamente a doxa e aquilo que nos dá um conforto, uma segurança. Nós passamos a achar que está tudo bem, que está tudo tranquilo, que está tudo calmo: não está; não está! Nós estamos diante do caos. Nós estamos diante do caos, nós estamos diante do vazio e é o pensamento que tem que confrontar com ele e de lá trazer alguma coisa. (...)

Vocês, então, têm aqui a tríade: sujeito psicológico, objeto e pensamento. Como minha primeira exposição de pensamento, o pensamento seria, no caso do Espinosa, o que ele vai chamar de ideia expressiva. A ideia expressiva é porque o pensamento é aquilo que expressa esses mundos possíveis, enquanto que o sujeito manifesta as suas psicologias. Nós vamos diferir um sujeito humano ― ele está sempre manifestando os seus fantasmas, as suas biografias… E quando você lê esses textos de best seller, os sujeito é sempre fantástico (não é?). É sempre um sujeito fantástico, que é diferente do que o Proust está dizendo do pensamento ― que é a entrada nos mundos possíveis. Isso vai se chamar idéia  expressiva. (Eu acho que foi bem, não é?). Chama-se IDÉIA EXPRESSIVA, no sentido de que expressa os mundos possíveis. E o sujeito é aquele que manifesta a sua psicologia.
(fim de fita)
Parte 2
A representação representa os nossos estados psicológicos, a nossa biografia, os nossos fantasmas. Enquanto que a expressão, a idéia expressiva, à diferença da idéia representativa, (aí que vai começar a ficar difícil, eu vou fazer um esforço enorme para vocês entenderem…), a idéia expressiva não expressa o psicológico. Ela vai expressar o que em Proust chama-se mundos possíveis e em Espinosa chama-se terceiro gênero do conhecimento. Aí, veja bem, é possível que nós possamos dizer algo que não seja da nossa psicologia, dizer algo que está em nós, mas não é psicológico. É como se fosse uma unidade diferente, alguma coisa que nos pertencesse, mas não fosse nosso; alguma coisa do espírito, mas não da nossa biografia, não da nossa subjetividade. Ou seja, a função da arte não é contar os nossos sofrimentos pessoais, a função do pensamento não é dizer da nossa história, da nossa biografia, mas é expressar isto que eu estou chamando de mundos possíveis. (Dois pontos, que eu vou começar a explicar. Acho que foi bem outra vez, não é?).
O que eu quero que vocês marquem, que não se esqueçam, é a distinção entre idéia expressiva e idéia representativa ― e a propriedade que eu coloquei na idéia representativa, que é a distância. Isso daqui é fundamental no momento em que a gente for trabalhar em arte. Que a distância faz parte da representação. E um outro fato que eu distingui, fiz uma distinção entre manifestações psicológicas e expressões de alguma coisa que está dentro, mas que não é psicológico.
(Então, vamos fazer essa passagem, eu vou para dois minutinhos para tomar um café. Podem perguntar também).
É o que vocês vão fazer para fazer o uso da vida de vocês. Ou seja, tornar esse planeta magnífico ou, mais do que nunca, torná-lo paranóico e insuportável, como ele é. Quase que já explodindo, de tão insuportável que ele é.(...)

toda aula do Prof. Claudio Ulpiano sobre Lucrécio e Espinosa 16-06-1994 http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/?p=2891

ilustração - Vênus de Bouguereaul

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Leonardo Boff-O impossível pacto entre o lobo e o cordeiro

"...Isso me reporta ao comentário cínico de Napoleão depois da batalha de Eylau ao ver milhares de soldados mortos sobre a neve:” Uma noite de Paris compensará tudo isso”. Eles continuam recitando o credo: um pouco mais do mesmo, de economia  e já sairemos da crise. É possível o pacto entre o cordeiro(ecologia) e o lobo(economia)? Tudo indica que é impossível....)


segue  o Tx de querido LBoff e um
afetuoso abraço virgínia vicamf  L
                                     O impossível pacto entre o lobo e o cordeiro

Leonardo Boff
Teólogo/Filósofo
 
Post Festum, podemos dizer: o documento final da Rio+20 apresenta um cardápio generoso de sugestões e de propostas, sem nenhuma obrigatoriedade, com uma dose de boa vontade comovedora mas com uma ingenuidade analítica espantosa, diria até, lastimável. Não é uma bússula que aponta para o “futuro que queremos” mas para a direção de um abismo. Tal resultado pífio se tributa à crença quase religiosa de que a solução da atual crise sistêmica se encontra no veneno que a produziu: na economia. Não se trata da economia num sentido transcendental, como aquela instância, pouco importam os modos, que garante as bases materiais da vida. Mas da economia categorial, aquela realmente existente que, já há muito tempo, deu um golpe a todas as demais instâncias (à política, à cultura e à ética) e se instalou, soberana, como o único motor que faz andar a sociedade. É a “Grande Transformação” denunciada ainda em 1944 pelo grande  economista húngaro-norteamericano Karl Polanyi. Este tipo de economia cobre todos os espaços da vida, se propõe acumular riqueza a mais não poder, tirando de todos os ecossistemas, até à sua exaustão, tudo o que seja comercializável e consumível, se regendo pela mais feroz competição. Esta lógica desequilibrou todas as relações para com a Terra e entre os seres humanos.
         Face a este caos Ban Ki Moon, Secretário Geral da ONU, não se cansa de repetir na abertura das Conferências: estamos diante das últimas chances que temos de nos salvar. Enfaticamente em 2011 em Davos diante dos “senhores do dinheiro e da guerra econômica”declarou:”O atual modelo econômico mundial é um pacto de suicídio global”. Albert Jacquard, conhecido geneticista francês, intitulou assim um de seus últimos livros:”A contagem regressiva já começou?”(2009). Os que decidem não dão a mínima atenção aos alertas da comunidade científica mundial. Nunca se viu tamanha descolagem entre ciência e política e também entre ética e economia como atualmente. Isso me reporta ao comentário cínico de Napoleão depois da batalha de Eylau ao ver milhares de soldados mortos sobre a neve:” Uma noite de Paris compensará tudo isso”. Eles continuam recitando o credo: um pouco mais do mesmo, de economia  e já sairemos da crise. É possível o pacto entre o cordeiro(ecologia) e o lobo(economia)? Tudo indica que é impossível.
         Podem agregar quantos adjetivos quiserem a este tipo vigente de economia, sustentável, verde e outros, que não lhe mudarão a natureza. Imaginam que limar os dentes do lobo lhe tira a ferocidade, quando esta reside não nos dentes mas em sua natureza. A natureza desta economia é querer  crescer sempre, a despeito  da devastação da natureza e da vida. Não crescer é prescrever a própria morte. Ocorre que a Terra não aquenta mais esse assalto sistemático a seus bens e serviços. Acresce a isso a injustiça social, tão grave quanto a injustiça ecológica. Um rico médio consome 16 vezes mais que um pobre médio. Um africano tem trinta anos a menos de expectativa de vida que um europeu (Jaquard, 28).
         Face a tais crimes como não se indignar e não exigir uma mudança de rumo?  A  Carta da Terra nos oferece uma direção segura :”Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no coração; requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal...para alcançarmos um modo sustentável de vida nos níveis local, nacional, regional e global”(final). Mudar a mente implica um novo olhar sobre a Terra não como o “mundo-máquina” mas como  um organismo vivo, a Terra-mãe a quem cabe respeito e cuidado. Mudar o coração significa superar a ditadura da razão técnico-científica e resgatar a razão sensível onde reside o sentimento profundo, a paixão pela mudança e o amor e o respeito a tudo o que existe e vive. No lugar da concorrência, viver a interdependência global, outro nome para a cooperação e no lugar da indiferença, a responsabilidade universal, quer dizer,  decidir enfrentar juntos o risco global.
         Valem as palavras do Nazareno:”Se não vos converterdes, todos perecereis”(Lc 13,5).
 
Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra-cuidar da vida.Como evitaro fim do mundo, Record 2011.
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Texto recebido por EMail do Autor para leitura e divulgação, este é Colaborador do Canal de Filosofia do Espaço Ecos Portal VMD  
Ilustração obra do Atista  Marciano Schmitz http://www.facebook.com/marciano.schmitz